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Gente grande.





Entrevista feita em 5 de janeiro de 2010,

Sua vida?

Como descrever a vida de uma mulher que batalha contra o cansaço, contra o desconhecimento? Ela, que representa o povo oculto por um pano de seda branco transparente, que fingimos não existir para que não nos sintamos criaturas cruéis, se recusa a cair, se recusa a desistir?

Eu pensei em fazer uma edição grandiosa de suas falas, arrumar a gramática, usar meus dotes de escrita. As vezes, eu o fiz, outras, deixei que falasse como bem desejasse. Tentei não interromper, durante a entrevista, controlei meu anseio de elogiar ela, elogiar a garra e a força que ela carrega e faz a minha não chegar nem perto do rapo do tacho, se nos compararmos.

Na entrevista, me mantive calada em relação aos elogios, queria escutar a versão crua e sofrega que ela tinha, não queria intimá-la com minhas palavras; mas foi impossível deter os dedos que redigiram as falas. Por este ato, peço desculpas ao leitor que se sentir incomodado. 


“Meu nome é Maria do Bom Jesus. Sou alagoana e não amo meu corpo, meu sotaque, meus pensamentos. Meus cabelos eram cacheados, hoje são apenas ressecados e quebradiços, a tinta preta barata que uso para cobrir os fios brancos se ajunta com o relaxamento que faço em casa todo mês e faz eles ficarem assim.

Tenho cinquenta anos, essa pele, óia só, queimada e manchada pelo sol. Tudo graças à época de minha infância banhada pelo tabalho na roça. Eu mais trabaiava do que brincava ou estudava, mas eu daria algo melhor para os meus fios.

Minha profissão é empregada doméstica. Subi muio, para quem cresceu na roça com o sol queimando tudo e te matando de sede. Ganho quatrocentos reais para cuidar dos meus filhos e de meu cabelo – um pouco de vaidade não deve fazer mal, não é não (ela solta uma risada gostosa)?

Ai vejo as filhas da minha patroa comentando sobre estrias e celulite. Perguntei um dia o que era aquilo, e descobri que tenho muitas. Os meus filhos me presentearam com tantas estrias, que assustaria aquelas moças bonitas que lutam para serem ainda mais.

Tive doze filhos.

Eita, não me olhe assim! Dos doze, cinco estão casados. Uma mora sozinha, tabalha e faz faculdade de engenharia, ela tem um dinherão e me orgulho disso, mas não peço dinheiro. Já tenho minha vida feita. Aquela grana é toda dela, para ela ser tão linda quanto as filhas da minha patroa.

Dois terminaram a escola e trabalham, mas ainda moram comigo. Não ligo não, são novinhos ainda e esta coisa de casar cedo já não serve de nada. A gente vive tanto, não é? Só peço que não embuchem uma moça, pois vão ser pai por bem ou pela porrada!

Há uma filha que... (Ela para um pouco, está com os olhos focados na janelinha aberta, por onde o vento dá o ar de sua graça. Quando volta a falar, sua voz está dura como uma rocha.) esta jogada pelas ruas em meio as drogas. Três morreram, um de AIDS, uma no parto complicado, mas meu neto é lindo, a cara da mãe; e outra fora arrastada por uma correnteza em um dia de enchente. Fico triste de pensar que minha mais nova estaria viva se eu tivesse me esforçado mais e dado uma casa mior pra nós.

(Maria para um pouco, apreciando o luto antigo. É impossível interromper ela).

Meus olhos são amarelados, tudo devido a constante amargura que senti em minha vida, sabe. Cresci assim, saí do berço olhando nos olhos de meu pai e sabendo que minha vida seria dura como a dele ou até pior. Mãe sofre mais que pai, pois coração de filho canta os batimentos em ritmo da mãe. É coração de mãe que faz dupla perfeita com coração de fio.

Meu marido morreu aos quarenta e cinco anos devido a bebidas e cigarros. Não fico no luto por ele não. Em vinte anos de casada fui traída cerca de dezessete vezes, nenhuma me doeu, pois meu coração só é de meus filhos.

Aquele aquário vazio foi onde morou o peixinho de minha mais nova, aquela que as água levou. Num consigo colocar um novo nem me livrar daquele vidrinho. O cachorro é um vira-lata, seu nome é Bob. Meus filhos que mora comigo que pegaram na rua. É bom, come os resto de comida e ainda protege a gente.

Eu dizia que não gosto de mim. Mas não é só minha pele que tá gasta não, minha barriga e meus peitos são caídos. Tenho uma verruga no joelho esquerdo.

Quando me olho no espeio, lembro daquelas moça da televisão e fico mal. Tanta velha bonita. Isto me faz odiar televisão e amar o rádio. O rádio te faz bonito pela voz, te faz imaginar as pessoas. É leve e bom. Danço até um forrozinho com a vassoura (ela cora, quando fala, e ri sem graça. Acompanho a risada dela com gosto. É a mais bela que já escutei).

Não tenho nenhuma saudade dos filhos que perdi e nem compaixão dos que já estão criados, claro, tem a exceção da Joaquina, a da faculdade. Luta muito para ser feliz e não tem medo de arriscar, por isso se um dia ela perdesse tudo, eu estaria aqui para ajudá-la.

Tenho também quatro netos, e só vi um, uma ou duas vezes, apenas. (Ela faz uma careta que claramente mostra nojo). Eles não querem amostrar a mãe sem estudo.

Não sei ler, nem escrever. Isto faz com que as pessoas me olhem estranho, quando peço ajuda. Me olham como se eu fosse burra. Eu sei que morar aqui em São Paulo é assim mesmo, é ser caçoada por uns e valorizada por uns outros. Não ligo muito para isto, já liguei mais. Liguei pra quando meus filhos diziam que passavam vergonha por me ter como mãe, hoje, eles que se resolvam com as pessoas.

Eu adoraria ser a atriz principal de um filme ou uma novela. Como aquelas da televisão.

Mas minha beleza me impede, e tudo porque fui pobre. É mais fácil fazer um belo ficar feio, do que um feio ficar belo, não é? (O riso dela é sem vontade. Uma obrigação). Mesmo com tanta tecnologia, o pobre não pode ser quem quiser, nem ser tão belo quanto os ricos. Tecnologia é caro.

Meu maior gosto é ver que todos os meus já conseguem viver sozinhos. Aliás, criei os cinco filhos casados, na base da ‘palmadinha’, já a menina da faculdade, criei sobre mimos, virou gênio forte, mas a vida deu umas boas palmada nela e ela aprendeu. De que adianta, minha filha, uma lei nos proibir de bater na bunda de nossos filhos, se a vida bate até sangrar? Por que não querem que ensinemos nossos filhos a viver de verdade? Eu sei viver, sei o que é sofrer. Se eu perder tudo, começo de novo sem abaixar a cabeça pra vergonha.

Olha só, eu odeio como penso da vida, acho que tem muita coisa de linda. É lindo a forma como as pessoas se preocupam com as outras. Como as mulheres das novelas e filmes amam seus filhos e criam com amor e carinho. Mas é uma realidade que não vivi, então na vida real eu me esqueço e fico com essa amargura.

É que sou hoje gente grande e não tenho tempo de ser tão feliz quanto uma criança. Sonhadoura, crente das coisa. Essa parte da minha vida eu perdi lá em Alagoas, em meio a seca, a fome, a raiva, em meio ao tratamento velho, ao analfabetismo.

Sem saber o que se passa por lá, as pessoas da cidade grande, as pessoas com educação acham que são apenas contos infantis. Poucos dos que de lá saem, conseguem sobreviver, e poucos do ficam sobrevivem também. Ter casa, comida e educação é mais fácil na cidade do que no interior.

Não pense que as novelas contam todas as verdades.

Tem que ir lá para acreditar e entender qual o sentimento que se vive. Amor só para quem pode, pra quem já tem dinheiro.

(Ela para de falar. Está com raiva. Eu vejo em seus olhos. Então lhe pergunto: “Qual seria seu desejo de criança? Se pudesse realizar ele, qual seria?)

Meu desejo é ser como as moças das novelas. Grande e bonita quanto elas.”



Fui fazer uma pesquisa para saber como era a vida das pessoas que saíram de uma cidade oculta da “grande população”. Como era mudar do interior para a cidade grande, uma cidade como o Rio de Janeiro ou São Paulo.

Acaba que me deparei com uma mulher maravilhosa, um pouco endurecida com a vida, mas com o sonho singelo de ser tão gente grande quanto as moças das novelas. E, liricamente, descobri uma das mulheres mais belas que a vida poderia me apresentar, pena que não é a beleza que a massa busca.

Amanda C. Kushico.


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Notas:

Este texto é apenas uma ficção. As datas, pessoas e nomes que aparecem ou são citadas são de total autoria do escritor. 

Uma homenagem para todos aqueles que vivem lutando e nunca são chamados de heróis.

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