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Mula - Capítulo 01

Mula.




O vento soprou espalhando a poeira do asfalto quebrado. Para quem não era acostumado, o clima estava insuportavelmente quente, com um vento insuportavelmente quente.

Sesta! Pediam os moradores que, no sol a pino, caçam alguma sombra para digerir a comida recém-consumida.

- É um belo sábado. - Comentou o padre local. - Um maravilhoso sábado.

E era. Realmente um belo sábado de verão, onde a cidadezinha silenciou-se por uma hora.

O padre, citado acima, estava sobre a escadaria da igreja, observando a poeira se erguendo na companhia do vento fraco e caloroso. Em pouco tempo, ele começaria uma nova seção no confessionário e queria aproveitar o tempo sob o ar fresco do dia.

Estava sozinho. O bispo tinha voltado para sua cidade natal há dois dias e demoraria mais uns quarenta ou sessenta para retornar à pequena cidade de Ponta Porosa. Teria trinta dias certeiros, para cuidar daquela pequena cidade abandonada por Deus e esquecida pelos demônios.

Mas não esquecida pelas lendas.


01


- Eu juro por Deus que irie te matar!

A voz exaltada da mulher ergueu-se pelo centro da pequena cidade. Algumas senhoras, que estavam perto da janela, correram para o parapeito com o único intuito de coletar informações e espalhar para os vizinhos.

Havia um carro bonito, arranhado pelas pedras da estrada e com a tinta queimada pelo sol, parado em frente a praça central. Uma mulher alta empurrava a porta arranhada enquanto, pelo outro lado do carro, um homem magro também descia.

Ele tinha a pele envelhecida, demonstrando ser mais velho do que a mulher esguia. A paciência lhe escorregava pelos olhos e tranquilizava quem olhava – com exceção da mulher que o acompanhava.

- Você...

- Senhora! - A mulher cortou o homem. - Estou de férias, mas você ainda trabalha para mim.

- A senhora precisava descansar. Nada pega neste fim de mundo, então estará livre do trabalho.

- Do trabalho, da tecnologia, da vida. - Ela resmungou. - O que faremos agora?

Dona Joana, uma das mais fofoqueiras da cidadezinha, já corria contra a escadaria da igreja e gritava pelo pároco local. Ela queria ser a primeira a contar sobre a mulher, de sotaque chique, que tinha chegado à cidadela aos berros.

A senhorinha atravessou a muralha de madeira que lacrava a igreja e benzeu-se logo em seguida em honra e respeito ao bom menino Jesus que estava crucificado sobre o altar. Trotou pelo piso de madeira, agraciada pelo frescor do ambiente e bateu o punho fechado contra a madeira da saleta do padre.

- Já vou. - Anunciou a voz masculina e suave.

Mais batidas desesperadas.

- Um minuto!

Mais algumas batidas.

- Minha nossa senhora, quanto desespero! - Bradou o padre ao abrir a porta de sua sala de descanso.
Ele encontrou a senhorinha afobada, de bochechas avermelhadas e os pés sujo pela poeira da cidade.

- O que houve, Dona Joana? - O pároco questionou com desespero. - Aconteceu algo?

- Menino, tu não vai acreditar! - A senhorinha anunciou abrindo um sorriso bobo. - Pois, eis que acaba de chegar uma senhora pomposa e berrante, prometendo a morte de senhor Matias!

Matias estava de volta? Pensou o padre. Sem anunciar-se? Ligar ou enviar uma carta?

- E olha que o senhor Matias é um homem bom e direito! - Continuou Joana. - Não deve, não faz mal a um cavalo.

- Senhora Joana, – O padre chamou, arrancando as palavras que jorrava da boca da mulher e lhe puxando a atenção. - ela pode ter usado uma expressão. Uma forma de falar e mostrar que está incomodada.

- Ah, entendo. - A senhorinha exclamou. - Mas acho que o senhor deveria dar uma olhada. Uma moça bonita como aquela, não deveria ser tão estressada.

Aproveitando o conselho da mulher, o pároco caminhou até a porta de madeira e a abriu. Deu passagem para Joana e logo depois olhou em volta, caçando a visitante.

O vento erguia uma nova camada de poeira e alguns cochichos escapavam pelas lojas e casas que haviam por perto. Matias escutou a companheira rosnar. Assim que o vento se assentou, Matias recomeçou a caminhada. Estava levando Elisabete para conhecer seu sobrinho.

Elisabete estava passando por uma onda de estresse e fora obrigada a tirar férias. Uma longa temporada de trinta dias sem se preocupar com o trabalho ou vida social. Fora recomendação dele, de Matias, ir para Ponta Porosa no interior, do interior, do interior do país.

Lugarzinho esquecido por qualquer tipo de vida e que os telefones funcionavam porcamente.

Mas, enquanto Ponta Porosa era conhecida por ser esquecida, a cidadezinha carregava as mais bonitas demonstrações de natureza. Tinha água fresca e abundante, e um rio extremamente fresco, que atraía qualquer ser vivo para ir até lá se refrescar durante o dia. Levaria Elisabete para lá quando fosse mais tarde, pois agora, teria muita gente aproveitando a água e isto a deixaria mais irritada.

Juntos, Matias e Elisabete subiram os degraus da igreja e encontraram, logo após os degraus, o pároco local.

- Sua bênção, padre. - Matias saudou.

- Eu que lhe peço a bênção, meu tio.

O fato é que aquele papo era tão irritante, para Elisabete, quanto estar naquela maldita cidade. Contudo ela não interrompeu a disputa entre tio e sobrinho, sobre quem deveria dar a bênção à quem.
Estava desejosa. Queria arrancar aquele padre da vida destinada à igreja e jogá-lo na primeira cama que encontrasse. Pensou por um momento, enquanto tio e sobrinho colocavam o assunto em dia, se o pecado de devorar um padre aumentaria, quando consumado sob o teto da igreja.

- Este é o meu sobrinho, Pedro.

- Pedro. - Retrucou a visitante.

Ela retirou os óculos escuros, saudou o padre com um aberto de mão e aproximou-se um pouco dele.
Era um homem bonito, encorpado, moreno de cabelo e pele dourada. Tinha mesma altura que ela, ficando um pouco mais baixo sob os saltos agulha que erguiam o corpo feminino e fascinantes olhos verdes, que seduziriam qualquer mulher tão depravada quanto Elisabete.

- Pe-dro. - Ela soltou de forma pausada.

Sorriu. Um verdadeiro sorriso malicioso, que escancarava o desejo de tê-lo para si.

- Acho que alguém nunca escutou a lenda da mula sem cabeça. - Sussurrou o padre, demonstrando uma mistura de nojo e medo.

- Isso é algo que vem do povo da cidade. - Joana comentou com asco. - Tão cheio de estudo e tão tolos!

Elisabete soltou a mão do padre e recolocou os óculos. Ela poderia escutar diversos desaforos por parte de um homem tão sensual quanto aquele padre, mas nunca deixaria que uma senhora analfabeta tentasse lhe dizer o que fazer ou não fazer.

- É por estudar que eu não caio nessas lendas. - Retrucou Elisabete. - E nem fujo de uma luta ou saio de fininho, depois de provocar alguém.

Joana girou no eixo, erguendo a saia e levantando um pouco de poeira. Ela estava vermelha pela cólera que sentia e jurava que estapearia aquela dondoquinha que falava bonito.

- Eu só disse a verdade! Mulher que pensa em padre como homem vira mula!

Aguardou a reação de Elisabete, mas a mulher ficou a olhá-la do topo da escada. Não havia raiva no rosto claro, não havia tensão no corpo esguio. Apenas o silêncio. A crueldade de um silêncio frio, sem vestígios de raiva ou qualquer outro sentimento que sussurrasse o que estava por vir. Joana, por culpa daquele silêncio, sentiu-se acuada. Um medo digno de não saber o que fazer para se proteger e nem do que se proteger. Era como estar com os olhos vendados enquanto o demônio em pessoa lhe cercava em silêncio.

De onde viria o ataque? Qual seria o ataque?

- Está quente. - A visitante comentou.

E logo em seguida estava virando-se para Matias, ignorando a local com maestria.

- Podemos beber algo gelado? - Virou o rosto para o padre. - Senhor padre?

A senhorinha fofoqueira ficou ali, no meio da escada, vendo o trio entrar na igreja fresca e esquecer que ela existia.

Quando a porta de madeira se fechou, Joana já tinha corrido para a pracinha da cidade, onde fofocaria tudo o que tinha acabado de vivenciar. Estava salva graças ao senhor bom Jesus, mas sabia que uma mula nova estava para nascer.

Era sempre assim. Uma mulher vinha de longe e logo a mula surgia.

Continua...

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