Pular para o conteúdo principal

O que fala a minha roupa?


Eu fechei a porta do meu quarto e tremi quando o ar gelado bateu contra meu corpo ainda úmido. As janelas estavam lacradas com a lâmina de alumínio e com as cortinas pesadas que impediam qualquer vestígio de luz entrasse em meu quarto. A luz, entretanto, estava acesa. Acreditei que só eu me via, logo, não tinha quem incomodar por estar vestido apenas uma toalha enrolada sobre meu corpo e meus cabelos.

As portas de meu guarda-roupa estavam escancaradas, mostrando peças dobradas e penduradas, algumas, amarrotadas ao terem sido jogadas apressadamente no móvel. Tantas vezes eu já tinha ficado ali, parada em frente ao meu guarda-roupa, presa em dúvidas gritantes sobre o que eu me deixaria mais bonita ou confortável, se eu deveria usar a roupa da Barbie, cheia purpurina e que combinava com meus sapatos que acendiam ao baterem contra o chão ou se eu deveria seguir a regra da escola e usar o uniforme. Me lembrei de quando escolhi a primeira roupa para meu primeiro encontro, a primeira roupa para minha primeira entrevista, a primeira roupar para tantos outros casos e acasos que aconteceriam pela primeira vez ou primeira última vez.

Estiquei minha mão para pegar um vestido dobrado entre as lâminas de um cabide pendurado. As alças finas deixariam meu sutiã aparecendo.

Pensei, então, em não usar o sutiã.
Que feio, os peitos sem sutiã.
Olha os peitos de fora, quer que fiquem olhando.
Se tá sem sutiã é porque está querendo.

Puxei meu braço para junto do corpo. Minha respiração se descontrolou com os pensamentos que invadiriam as pessoas se eu decidisse seguir aquele desejo de sair sem sutiã. Repensei na ideia do vestido.

Ninguém ensinou que o sutiã não deve aparecer?
Ela podia usar um tomara que caia, ia ser um pouco desconfortável, mas ia ficar sexy e bonito.

Retorci meus lábios enquanto pensava naquele vestido.

Que cor horrível.
Ela não está com frio?
Olha que pernas!
“Nossa, que delícia hein!
Que sorte, fiquei atrás desta gatinha de vestido, acho que vou dar uma sarr...

CHEGA! Arfei.

Me afastei um passo do guarda-roupa que, agora, mostrava-se impaciente com minha demora na escolha. A casa gemeu, estralou por algum motivo que eu nunca soube se foi de pena, de graça ou com cumplicidade pelos meus problemas em escolher uma simples roupa.

Puxei uma blusa de mangas cumpridas amarrotada. A vesti sobre um sutiã com bojo para que nenhum vestígio de meus seios pudesse ser utilizado como atrativo. A calça que vestiu minhas pernas era um número maior do que eu precisava, folgada como uma calça masculina, pregada com um cinto desconfortável. Tênis pretos, impossíveis de serem chamativos. Meu cabelo ficou preso em um rabo de cavalo mesmo que ainda estivesse molhado e isto viesse a me fazer algum mal.

Quando saí de casa, o sol me queimou de dentro para fora. Ele me questionou todos os segundos, o motivo de eu ter escolhido aquela roupa tão... Genérica. Eu seria uma pequena coisa jogada no mundo, fazendo o que eles querem que eu faça, me usando para rir.

Mas o sol não sabe o que é insegurança, fraqueza. O sol não sabe o que é não ser escutado, o que é não ter em quem contar para ser defendido mesmo que a defesa seja seu direito. O sol não sabe o que é se tornar culpado, quando nem ao menos fez algo para se ter culpa. O sol, reina, é ilustre e maltrata quem pensa em lhe desafiar.

Eu quis ser como o sol. Mas não sou.

 ♦♦♦♦


Uma lágrima caiu de meus olhos quando eu percebi, no fim daquele dia, que não adiantava o que eu tivesse vestido, não são minhas roupas que falam, como eu pensei, mas sim as pessoas que são covardes e não aceitam seus erros e pensamentos, não pagam por seus atos e nem mesmo julgam quem precisa ser julgado.

- Olha aquela sapatão ali. - Falavam de mim, usando minhas roupas como desculpa.

Usando termos para caçoar de mim sem ao menos se importarem com os crimes que estavam cometendo.

- Essa aí nunca teve um macho de verdade.

Eram dois, para esclarecer.

- Vamos mostrar o que ela está perdendo?

E todos os que ouviram, não se moveram. Porque era tudo modinha. Porque minhas roupas disseram que eles poderiam fazer aquilo. Por que me fiz de vítima, quando não era. Porque era só uma brincadeira. Porque eram covardes.


Porque, definitivamente, eram covardes.

♦♦♦♦


A porta do meu quarto estava aberta e tremi quando o ar gelado bateu contra meu corpo ainda úmido. As janelas estavam abertas. As cortinas leves, presas. Não liguei se alguém podia me ver.

As portas fechadas de meu guarda-roupa escondiam as desculpas da sociedade, mas os espelhos colados a ela, mostravam um corpo abusado.





#PorTodasElas 
#PorTodosEles 
#PorCadaDesculpa 
#PelaVida 
#PorMenosDesculpas

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Filme: Moana - Um mar de aventuras.

Eu sabia que assistir Moana significaria ver um musical da Disney, os padrões clássicos de muita música e alguma tragédia estariam ali. Assistir animação da Disney, para mim, é quase certeza de que será um mártir pela quantidade de música (e música repetida) que será colocado ao longo da trama. Ainda assim, cheia de receios e motivos para desistir, sem expectativa alguma de me divertir, cedi à curiosidade de assistir a melhor animação da minha vida: Moana.

Série: Rita

Rita é uma professora do nono ano que possui vários problemas, não só na escola, mas consigo mesma. A personagem é, sem dúvidas, uma caixinha de surpresa e muito mais consciente da humanidade nas pessoas que a cercam do que aparenta. Com muita abordagem sobre sexualidade, a série vem trazer outros temas como drogas, influencia dos pais sobre os alunos e dificuldade em reconhecer problemas alheios.

Conhecimento abstrato.

Falar sobre pessoas é um pouco mais fácil do que imaginamos, mas muito mais abstrato do que nos contam. Uma mescla de incertezas que se moldam ao que tanto necessita.  Quando se para observar, somos uma pessoa diferente a cada hora, a cada lugar, em cada situação.  Então, nada mais justo do que nos conhecermos tão bem quanto nos desconhecemos.