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Tanto mais para viver.


“Mas é verdade” começava minha avó. “Eu era nova e não tinha muito que fazer. Naquela época, as coisas não eram tão fáceis quanto hoje e trabalhar com bom salario era luxo. Viajar de avião era algo nobre, ficávamos felizes em ganhar aquelas bolsinhas com escova de dente que nossos amigos nos traziam quando tinham que viajar a negócios.”


Ai, ela soltava uma risadinha e me faz pensar que a vida na cidade grande não é tão fácil quanto ela pensa. Tudo é rápido demais, sem tempo.

“Viajar a negócios. Só gente rica falava disto, hoje qualquer trabalho na cidade faz com que tenha que viajar.”

Minha avó nunca morou em cidade grande, apenas naquelas cidades de interior, onde o carro do Google Maps não consegue chegar, meninos que nem saíram das fraldas já montam em cavalos ariscos, jovens moças já cuidam da casa e berram com os irmãos mais novos “Eu vou contar para a mãe e ela vai lhe meter a mão na orelha. Tome tento não”.

Minha vó nunca teve muito luxo, se comparado a mim, que ando trocando de celular a cada quinze meses ou menos. Para ela, dizer que estou na faculdade é luxo, algo para se encher a boca de orgulho, meu avô gostava de jogar isto nas rodas da bebedeira.

“Orgulho meu, já tem até faculdade. Fala bonito que só. Até inglês entende”.

Quando minha vida estagna, penso neles. Quando desisto de mim, penso neles. Eles diriam para que não me apresse, ainda estou no começo da vida, vá com calma, estamos aqui. Eles me diriam para ir até a casa deles, largar um pouco os perigos da cidade, que eu poderia ficar com eles até me achar.

E isto, isto é meu luxo. Eles são meu luxo.

Então, vovó me olha nos olhos, seu riso já esmaeceu. “Sei que pegamos o avião com todo mundo nos falando que é perigoso, que somos doidos. Até nos perguntaram, sabe? Nos disseram” Sua voz aumenta quando vai reproduzir a pergunta que lhe lançaram. “Mas, oi, tu não tem medo que o treco caia não? É tão grande e pesado. Fiquei sabendo de uns acidentes ai.” O queixo de minha avó está lá para o alto, as mãos balançando sobre a cabeça. Ela está gesticulando ensandecidamente, deixando tudo mais divertido.

O corpo dela se ajeita, enrijece o braço direito, ergue o dedo indicador enquanto os outros se recolhem lá na palma da mão. Ela aponta para o alto.

“Eu respondi: Mas em tantos outros não acontece nada. Minha fia e meus netos já vieram tudo e nada se aconteceu. Se cair a gente morre, mas eu vou. Já vivi muito e vou viver mais”.

Isto se agarra ao meu cérebro como um carrapato se agarra à orelha de um cachorro que zanzou pelas ruas da cidade onde moro. Já vivi muito e vou viver mais.

Abraço minha avó e beijo seu rosto perfumado enquanto ela solta uma risada gostosa e diz que o povo do interior tem medo bobo, que este medo faz com que nada mude. Então meu pai começa uma nova conversa.

Eu sei que as pessoas do interior tem muito medo, mas elas têm muito para ensinar. Achamos. aqui na cidade, que o tempo está acabando, mas a verdade é que a vida só está começando. Aqui temos medo de viver, mas também receio de viver pouco. No meio disto tudo, nos falta coragem de parar, respirar e pensar. 

Há tanto que foi vivido e tanto mais para se viver.

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